Lançamento do livro “Memória a Dois” em São Paulo – 7 de março de 2016

Textos das apresentações de João Bezinelli e Paulo Brito:

Paulo, assim que acabei de ler o livro que você me enviou escrevi um e-mail que não lhe mandei, e que o leio hoje.

Paulo, agradeço muito o convite para apresentar o livro – teu e do Sergio. Agradeço muito pelo carinho, principalmente por não ser eu, exatamente alguém que fale de livros. No máximo, e até por profissão, sou alguém que acompanha histórias, angústias, dores, sou alguém que contamina e é contaminado pelos vírus da vida… e da morte. Nós, terapeutas junguianos, do nosso jeito, tentamos ir além do discurso manifesto, tentamos também um olhar para o discurso oculto: para a voz da alma. E foi assim que li o seu livro e vi que ele vai além da palavra escrita, para além da palavra grafada no texto, tornando-se dessa forma importante não só pelo que diz, mas também pelo que evoca. Paulo, na fidelidade do seu relato, na simplicidade amorosa de como você diz, você faz com que de repente a gente esteja no casarão de Santa Teresa, escutando o eco do bondinho descendo a rua, sentindo o perfume do café recém-coado pela Chica. De repente estamos juntos, partilhando com você e Sérgio, tio e sobrinho, artistas, uma história de amor. Ler o livro é estarmos ali, ao lado de Alzira, tua avó e mãe de Sérgio, com a Nena e Hélio, teus pais tão queridos, e com o Naominho-gato, ronronando pela casa e se enroscando nos pés da gente. Somos como que “um” com a memória de Sergio, participantes todos de um tempo único, de um tempo que se condensa num “é”, aquele instante que reúne em si todo o tempo. De repente estamos num quarto, numa sala onde perfila ante nós a história do teatro brasileiro. Nesse tempo condensado se aglutinam amigos, autores, diretores, personagens e os Sérgios que foram tantos em um. É o que eu quis dizer, Paulo, quando disse que a força de um livro pode não estar apenas na palavra grafada, mas no que ela evoca, no que está atrás, no que está além. Isso é poesia e é também o que Jung, que foi uma das personagens, um dos “eus” de Sérgio, chamava de símbolo: é como aquela boneca russa, uma matrioshka que tem dentro de si uma outra, que também está grávida de outra e que nos leva a algo sempre além, para algo maior que a pequenez do nosso “eu”, para algo pleno de sentido. Essa capacidade de “um” que é muitos, esse tempo que é hoje e o infinito, essa porta aberta ao mistério…, bem, esse é o percurso do artista, essa é a alma de artista, aquela que fica como uma luz que clareia mesmo quando ele se vai.

É assim, Paulo, que você/Sérgio/matrioshka grávida nos levam do texto a Santa Teresa e de repente é uma delícia sermos recebido por você no casarão, de entrarmos e de te ver dançar com Sérgio – a mais perfeita junção de fisioterapia, ritmo e carinho. De te ver desfiando uma lista de palavras, fazendo com que Sérgio, às vezes carinhoso, às vezes birrento, a cada palavra associasse uma outra, e, dessa forma, por um lado você o ajudava a organizar uma memória ofuscada pelas trevas de um AVC, ajudava-o a reconstruir uma identidade, mas, por outro lado, você realizava uma espécie de um Experimento de Associação junguiano, aquele experimento em que uma palavra associada a outra e a outra acaba por nos revelar uma história subjacente, um subtexto. Uma história que, às vezes, não mais o cérebro, mas a alma nos conta. É curioso que a primeira palavra de Sérgio, que com sua ajuda começava a se organizar, a sair das trevas do AVC, a primeira palavra foi “Britha”, que é seguida por “Brotha”, que soa como um trajeto da pedra bruta ao brotar, ao renascer; e por fim ele consegue articular Britto, começando a consolidar assim sua identidade: Britto! E um pouco depois ele diz: “amanhici-noite”. O que a alma quer dizer quando diz que amanhece para a noite? E você, Paulo, nesse processo, foi como o ponto de teatro, o que murmura o texto ao qual o autor dá vida; melhor, aqui você foi como que um partejador de palavras, um partejador de memórias, aquele que as vai recolhendo, e elas vão grudando, vão se organizando, fazendo imagens, fazendo identidade e fazendo história.

E entre as memórias partejadas veio, e isso é tão significativo, “O Canto do Cisne”, a peça de Tchékhov,  fundamentada na lenda do cisne, mudo durante toda a vida, mas que quando se avizinha a morte canta um último e maravilhoso canto. Shubert a musicou como a “morte do cisne”. É a peça que Sérgio encenaria não fosse o AVC, é o texto com o qual se ocupava e que se fez tão importante nesse ponto da vida. Você nos conta que quando Isabel Cavalcanti visitou Sérgio, vocês três fizeram a leitura do texto, e que você, Paulo, a leu outras vezes, para que assim se fortalecesse a memória de Sérgio, que ansiava pela recuperação para poder encená-lo. A peça nos fala de um velho ator, Svetlovídov, que adormece no camarim e acorda no meio da noite e ainda com seu traje de palhaço, percorre o teatro vazio, chega então ao palco e dali, tudo o que vê, é um buraco negro sem fundo. Ele então sente a velhice e a festa que acaba. Mas de repente um susto, e eis que aparece Nikita, o ponto, que também dormira nos camarins. E então, como o último canto do cisne, Svetlovídov, com toda a energia e com o apoio do ponto que lhe dava a deixa, entre raios e trovões imaginários, encena Rei Lear, encena Hamlet, e terminam, os dois, com gritos de bravo! Bravo! E então Svetlovídov dirigindo-se a Nikita, o ponto, diz: “Nikita, onde há talento, não há velhice”! “Não chores… Onde há arte e talento não existe velhice nem solidão, nem doenças, e a própria morte recua uns passos”.

De fato, Paulo, a morte recuou alguns passos, esperou uns poucos meses antes de levar Sérgio. Nesse tempo você, como uma espécie de ponto-partejador, leu a peça para Sérgio, a peça que ele encenaria e que, não sei, Paulo, se você se deu conta, que numa espécie de metalinguagem Sérgio encenou, ou melhor, viveu, o que tanto queria viver: a peça que encenaria. Antes que ele amanhecesse para a noite.

Uma das últimas frases de Sérgio registradas por você no livro é: “Mas, o mais forte é o que fica no ar”. Obrigado, Paulo, por condensar para todos nós um pouco do mais forte – um pouco de Santa Teresa, um pouco da história do teatro brasileiro, um pouco da paixão de Sérgio pelo teatro, um pouco do amor de vocês que sem teu registro, ficaria no ar. Obrigado Paulo, por partejar, por trazer o livro à luz. –  João Bezinelli

 

 

Esse livro é um milagre, afinal Sergio estava chegando em casa de uma longa internação, debilitado, convalescendo, quando me fez o pedido: “Paulinho, agora você vai organizar o meu pensamento”. E eu ter ouvido o que estava por trás desse pedido.

Foi assim que esse texto começou a ser escrito.

Isso é o que chamo de milagre, está tudo ali para acontecer, mas foi preciso que Sergio e eu estivéssemos disponíveis.

Muito importante também o momento em que procurei Walter Boechat, seguindo também o desejo do Sergio. Walter, que já havia trabalhado com Sergio nos fundamentos da psicologia junguiana para a criação de seu espetáculo JUNG E EU, foi comigo de grande delicadeza, atenção, e logo percebeu a importância desse registro, aceitando escrever o prefácio. Isso foi fundamental para mim naquele momento.

Outro ponto importante foi a FUNARTE aceitar editar o livro. Sergio e eu sempre desejamos isso. Agradecemos a todos da Funarte, destacando Antonio Gilberto, Guti Fraga, Oswaldo Carvalho e Filomena Chiaradia.

Esse livro também faz parte de todo um projeto da nossa família, coordenado por minha irmã, pela preservação da memória do Sergio: Ocupação Sergio Britto em São Paulo, Projeto Sergio Britto Memórias.

Ainda no início, ainda nas primeiras anotações, eu lembrava da minha amiga Nise da Silveira, que sempre me dizia qual deveria ser a postura do terapeuta frente ao doente, frente à aquele que sofre. Que não se perguntasse muito, deixasse que a pessoa falasse o que queria e precisava dizer. O essencial. Porque eu tinha muitas curiosidades frente à vida do Sergio, às suas memórias, mas deixava que ele dissesse o que queria dizer, o que queria me contar. Eu sempre soube da importância desse texto e ele aos poucos, vai se dando conta, quando me pedia que eu lesse para ele o que nós tínhamos anotado. Sergio me ouvindo, vai se reconhecendo, vai fazendo contato com o significado do texto. Tudo devagarinho, respeitando o tempo que ele precisava, os silêncios, as reflexões para suportar a dramaticidade daquele momento. Esse texto foi também um exercício para manter a sua esperança de voltar ao palco, seu maior desejo. Durante a criação desse texto, Sergio ainda fazia comigo leituras da peça de Tchecov, O Canto do Cisne, que pensava encenar sob a direção da Isabel Cavalcanti. Ele tinha paixão por essa peça, e esse desejo ainda esteve presente até quando percebe sua incapacidade em memorizar.

Diariamente fazíamos exercícios teatrais, exercícios físicos, dizíamos poemas, cantávamos, Sergio eu e Marilia, dançávamos muito. Sergio adorava tudo isso, precisava se expressar e era necessário manter o seu tempo ocupado. Já no fim de sua vida, na sua última internação em dezembro de 2011, Sergio pede que o tire da cama do hospital: ”Paulinho, para eu ser feliz eu preciso trabalhar na boate, o único lugar do mundo que eu posso ser feliz é a boate ali, ao lado do teatro da Jacqueline Lawrence”.

Era o ator que precisava atuar, e quando me ditou esse texto, era um ator em estado de graça! – Paulo Brito

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